Valuation como arqueologia do futuro

Eu sempre tive um dilema quanto ao uso de indicadores de análise fundamentalista em meu trabalho com valuation. Por mais que sejam indicadores bons para analisar o passado de uma empresa, quando você trabalha com valuation você está mais interessado no futuro. Muitos indicadores fundamentalistas são utilizados para opinar sobre a “qualidade” da empresa, mas em valuation você está interessado no preço em relação ao valor. Alguns indicadores como margem bruta podem ser utilizados para projeção, enquanto outros não são projetáveis uma vez que são resultados finais, como indicadores de rentabilidade. Dessa forma, quando alguém começava a falar de indicadores fundamentalistas, margem bruta, ROE, ROIC, margem EBITDA, as perguntas que sempre me vinham à cabeça eram relacionadas a quanto isso afeta o preço e o valor da empresa e o que esses indicadores dizem sobre o futuro da companhia. Eu sempre tendo a pensar e analisar da forma mais desagregada possível e o que automaticamente sinto nessas situações é que estou vendo o final de um filme sem ter visto o resto da história.

Conheci o trabalho de um arquiteto chamado Tsuyoshi Tane em uma exposição chamada “Arqueologia do Futuro”. É um nome intencionalmente paradoxal olhando atentamente, uma vez que arqueologia é uma ciência que remete ao estudo do passado, então, a não ser que a expressão se referisse a como a arqueologia seria praticada no futuro, o que não é o caso, não parece fazer muito sentido.

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No site de seu ateliê, Tane mantém um manifesto. Destaco alguns trechos que considero mais interessante: “Acreditamos que a arquitetura começa com a memória do lugar, a memória que pode ser continuada do passado, que irá continuar no futuro”. “Nós começamos nosso trabalho da mesma forma que os arqueólogos uma vez que começamos a explorar uma longa distância no tempo e escavamos as memórias do lugar. É um processo de surpresa e descoberta, de buscar para encontrar o que não sabíamos, o que tínhamos esquecido e o que foi perdido. Por esse processo de pensamento do passado para o futuro, a memória do lugar pode lentamente se tornar arquitetura”. “Acreditamos que a memória não é alguma coisa que pertence ao passado, mas que é uma força motora para criar a arquitetura do futuro”.

Visitando a exposição, assistindo a uma palestra de Tane e lendo o folheto informativo sobre a exposição, vi como as ideias expostas tinham a ver com o dilema que mencionei no primeiro parágrafo.

Não usar indicadores fundamentalistas pode passar uma ideia errada do que eu faço. A minha análise sempre começa com o passado, como não poderia deixar de ser. Uma das minhas restrições aos indicadores é que eles são muito agregados e a análise retrospectiva que faço é extremamente desagregada, tentando entender cada linha de cada coluna dos demonstrativos contábeis ao nível de notas explicativas. E olhando para o futuro, cada linha que ainda exista no último demonstrativo disponível precisa ter algum destino.

Na analogia com arquitetura sob o conceito de “arqueologia do futuro”, se no local de uma nova construção existir uma estatua, eu iria procurar entender porque essa estátua existe e como incorporar a memória que ela carrega na futura construção, mesmo que a decisão seja por não incluir a estátua em si na nova construção. Os números dos demonstrativos contábeis carregam a história econômico-financeira da empresa e são a força motora de seus resultados futuros.

Uma questão importante relacionada com o uso de dados passados da empresa é que toda análise que você faz tem que ter algum significado. Análise é sobre responder perguntas e se um indicador não tem uso se não responde a uma pergunta. E não é que eu não use indicadores, apenas não uso a maioria dos que são mostrados em cursos de análise fundamentalista e, o mais importante, uso apenas os que têm alguma finalidade para projeção.

Considere a margem bruta, como um exemplo. Este é um excelente indicador para usar porque responde a uma pergunta muito clara: quanto da receita sobra após a dedução dos custos. Não apenas isso, possui uma função projetiva: qual é a estimativa da porcentagem da receita que se espera que continue na empresa após a dedução dos custos. Mas, olhando para frente, qual margem bruta usar, se esse número retrospectivamente varia? Essa é uma pergunta sem resposta única, porque depende da empresa, depende da sensibilidade do analista olhando os dados passados, depende da “narrativa” que o analista quer passar na análise. Em suma, depende da situação e do julgamento do analista.

Um trecho do manifesto de Tane que eu ainda não havia incluído resume bem a questão: “Aspiramos criar uma arquitetura que ninguém já viu, experienciou ou imaginou. É diferente de algo novo, algo futurístico que não se encaixa no lugar”. Uma das maiores angústias de se trabalhar com fluxo de caixa descontado é sobre a definição de parâmetros para algo que não aconteceu ainda, o futuro. Acontece que o futuro, na maioria dos casos, não será tão diferente assim do passado. Dessa forma, é possível analisar o passado da empresa, as condições que levaram a empresa a ter os resultados que teve no passado e tentar criar uma estimativa de futuro que se encaixe com esse passado.

Dessa maneira, avaliação por fluxo de caixa descontado usando resultados projetados deveria ser uma espécie de análise fundamentalista do futuro. Esse também é um termo paradoxal, já que análise fundamentalista utiliza apenas dados passados porque são todos os dados que temos disponível. A principal matéria prima para análise fundamentalista são demonstrativos contábeis, dados econômicos e preços e possuímos apenas valores históricos para todas essas informações. A ideia é que os resultados projetados devem contar uma história futura da empresa que se encaixe no passado. Obviamente que o futuro não será igual ao passado, avaliação por fluxo de caixa descontado seria um trabalho trivial se assim fosse. Mas os resultados projetados devem contar uma narrativa que seja coerente com tudo pelo qual a empresa passou e os projetos já anunciados que estão em andamento de maneira a contar uma história de continuidade ou transformação.

Além da margem bruta, uso outros indicadores para projetar resultados e balanço. Esses indicadores seguem alguma rota futura e cada um individualmente conta alguma narrativa de continuidade ou de transformação. É possível agregar tudo isso em indicadores maiores como ROE ou ROIC, mas não faz sentido projetar esses indicadores, que são consequência de outros. Então, apesar de nem considera-los olhando para trás ou para frente, indicadores de rentabilidade poderiam ser calculados, mas seus valores seriam apenas uma consequência das projeções de resultado e balanço. Uma boa maneira de checar se os números projetados fazem sentido, então, é realizar uma análise fundamentalista do passado do futuro e ver se os números estão dentro de uma realidade concebível. Se a rentabilidade da empresa crescer, então é necessário entender por que isso acontece, se faz sentido que cresça e se o valor que alcança é realista ou não. Esse é um dos cuidados que é necessário ter para a perpetuidade: se você não projetar adequadamente, a rentabilidade ou tende ao infinito ou tende a zero, mesmo que de maneira não intencional. Se cada indicador usado para projeção está dentro da razoabilidade, é provável que o conjunto esteja.

De concreto, o que o conceito de “arqueologia do futuro” ensina é que ao trabalhar com o futuro você deve considerar a memória acumulada e fazer algo novo que não se mostre deslocado da história.

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